Quase três décadas após as primeiras concessões ferroviárias, o país busca um redesenho capaz de conectar melhor os estados, as regiões econômicas e suas pessoas. Como testemunha próxima dessa história, penso que é fundamental deixar a nostalgia de lado e olhar para o amanhã. Como ferroviário, gosto do passado. Não vejo nenhum problema nisso. Só não posso admitir que o passado molde nosso futuro.
O processo de concessão da malha federal em 1996 foi algo extremamente necessário para o Brasil. Uma guinada eliminou um déficit de um milhão de dólares diários. Na época, com o intuito de preservar a integralidade da malha, trechos com muito tráfego, com pouco tráfego ou sem nenhum foram agrupados em uma mesma concessão, acreditando, os mentores da privatização, que a iniciativa promoveria a transferência de recursos necessários para assegurar a vida saudável de todo o conjunto das ferrovias.
Foi esquecido, então, que subsídios são, por via de regra, funções de governo e raramente, ou nunca, da iniciativa privada. Como resultado, boa parte da malha evoluiu e com expressivos investimentos ajustou-se às necessidades e à evolução da economia, porém os resultados não foram suficientes para sustentar o restante da malha com pouca ou nenhuma demanda de transporte ferroviário.
Não obstante isto, desde 2015, me posicionei entre aqueles que acreditavam que as renovações dos contratos de concessão seriam o caminho mais adequado para o aprimoramento da malha, gerando novos e maiores investimentos e, sobretudo, criando vantagens para todas as partes, em especial gerando valores para a economia e para a sociedade.
Quase 10 anos depois vejo, com satisfação, a materialização das renovações dos contratos de concessão da Estrada de Ferro Carajás, da Estrada de Ferro Vitória Minas, da MRS Logística e da Rumo Malha Paulista, atingindo todos os benefícios almejados, tais como investimentos propiciando aumento de capacidade, soluções de conflitos urbanos e investimentos cruzados em novas ferrovias, entre outros.
Enfim chegou a vez da Ferrovia Centro Atlântica!
A malha centenária da FCA é um dos exemplos da tese aplicada no processo de concessão de 1996: unir trechos “bons” a outros “ruins” no mesmo pacote com a esperança de preservar a integralidade da malha, como se fosse possível um compensar o outro. A experiência mostrou que a economia tem uma dinâmica própria e o cenário logístico tem inúmeras variáveis que se modificam ao longo do tempo.
O Brasil tem cerca de 50 trechos ferroviários sem tráfego ou com no máximo um trem por dia em circulação. Nessa situação temos entre 10 e 12 mil quilômetros de ferrovias. Apesar desse sinal de ineficiência, nem tudo está perdido. É possível mudar o jogo. O governo está entendendo isso e há um cenário de mudança na malha ferroviária nacional a partir de uma regulação mais moderna que permita tipos de operações diferentes.
Uma parte desses trechos subutilizados tem boas condições de serem redimensionados para vocações regionais de transporte de cargas, operação turística e fluxo de passageiros, ou até mesmo para outras utilizações das comunidades, tais como integração nos tecidos urbanos, estradas vicinais, parques lineares, ciclovias etc. Para muitos isso não é tão intuitivo. Em geral temos a fantasia de que toda ferrovia tem sempre rotas longas e um único modelo de circulação dos trens. O mundo nos mostra o contrário. Os Estados Unidos têm mais de 500 shortlines, o Canadá e a Alemanha também são referências neste modelo. O nosso passado precisa ser superado se quisermos um Brasil mais conectado e eficiente.
A devolução de trechos antieconômicos abre a possibilidade para uma revisão da logística das regiões e isso tem um potencial transformador. Hoje, toda devolução de malha ferroviária conta com um estudo da vocação do referido ramal, há uma metodologia para isso. Precisamos conectar estudos, regulação, políticas e recursos públicos. Podemos ter operações novas para movimentar outras cargas, tais como o café, os fertilizantes e a denominada carga geral.
Não é plausível acreditar que o traçado ou a operação de décadas passadas seria eternamente viável. Com esta tese entendida, há uma oportunidade de ajustarmos a rota agora.
Pelo que tenho acompanhado, acredito que a proposta atual de renovação contratual da FCA chegou no ponto de um ganha-ganha. Não se trata apenas de uma renovação contratual, como as que ocorreram até agora, trata-se de uma verdadeira reorganização, onde os problemas antes descritos estão sendo devidamente encaminhados.
Por suas características, a renovação do contrato da FCA terá um papel simbólico de marcar essa nova guinada das ferrovias no Brasil.
*Bento Lima, engenheiro, ex-diretor e presidente da VALEC, ex-diretor da RFFSA e da Rio Trilhos, ex-diretor executivo e um dos criadores da ANTF, hoje consultor na SYSFER
FONTE: AGÊNCIA INFRA